’Retornados’, uma história de baianos na África

Fotógrafo Enrique Martín-Ambrosio realiza em Madri uma exposição que retrata a cultura dos Agudás, descendentes dos brasileiros que retornaram para o continente africano em fluxos migratórios reversos  

Jan 15, 2024 - 13:33
Jan 9, 2024 - 17:00
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’Retornados’, uma história de baianos na África
Exposição Retornados  

Um dos mais famosos sociólogos brasileiros, Gilberto Freyre – que dá nome ao Aeroporto do Recife, atualmente administrado pela companhia espanhola Aena –, ao retornar do Benin, sentenciou: “E acontece que são baianos. De fato, uma grande comunidade de Agudás, em sua maioria originários de Salvador, Bahia, estabeleceu-se na antiga Daomé, no Golfo da Guiné, que hoje constitui o Benin”. 

 

“Muito se escreveu sobre a escravidão, especialmente a atlântica, que forneceu escravos para as recém-descobertas colônias europeias na América. Mas, durante meu longo período de residência em Salvador (BA), tive a oportunidade de conhecer e começar a estudar um fato curioso e digno de análise: o retorno aos seus lugares de origem daqueles que foram arrancados da chamada Costa dos Escravos e vendidos como mercadorias na América”, explica o fotógrafo hispano-brasileiro Enrique Martín-Ambrosio, que viveu mais de uma década no Nordeste, onde também exerceu cargos executivos em grandes empresas espanholas com representação no Brasil, como a Aena.  

 

Sobre esse movimento migratório que desafiou a lógica do tráfico de pessoas e fez o caminho inverso, promovendo o retorno de descendentes africanos do Brasil para o continente dos seus pais e avós, Enrique realiza a exposição “Retornados: Uma história de baianos na África”. Patrocinada pela TAP – Air Portugal, a exposição será inaugurada na Casa do Brasil, em Madri, no dia 23 de janeiro, e fica em cartaz até 10 de março.  

 

A abertura coincide com o período da maior feira de turismo realizada em Espanha, a FITUR, que vai de 24 a 28 deste mês. Além de importantes personalidades espanholas e brasileiras, já confirmaram presença representantes do trade turístico espanhol especializado no Brasil, o que reforçará as ações promocionais que o Ministério do Turismo irá realizar nas mesmas datas do destino Brasil.  

 

Além de celebrar uma parte da história do povo baiano, por quem o hispano-brasileiro nutre especial admiração, a mostra também homenageia uma das principais referências fotográficas de Enrique: o fotógrafo e antropólogo franco-brasileiro Pierre Fatumbi Verger. “Tendo em vista que esses foram temas tratados por Verger, tanto em seus livros, quanto em estudos e fotografias, serão expostos alguns de seus trabalhos originais, que possivelmente é uma das maiores referências no estudo da religiosidade e da cultura dos Agudás, pontua Enrique.  

 

Retornados 

Interessando pelo fenômeno dos Agudás, Enrique viajou até a África para conhece de perto seus descendentes contemporâneos. Ficaram conhecidos por esse nome, ou por ‘brasileiros’, porque o porto de embarque era localizado na cidade de Ouidah (a antiga Ajuda, de onde deriva o nome Agudá), onde ficava o forte português, centro desse comércio complementado por outros fortes holandeses, britânicos ou franceses.  

 

Três pontos tinham em comum para serem reconhecidos como etnia. Em primeiro lugar, a origem, pois embora fossem de famílias africanas, todos voltavam do Brasil – nesse movimento de retorno, é inspirado o nome da exposição: “Retornados”. Em segundo lugar, a religião, em sua maioria católica. E, por último, o idioma, neste caso, o português, que aprenderam durante sua estadia no Brasil.  

 

Segundo o pesquisador Milton Guran, professor convidado do Laboratório de História Oral e Imagem, da Universidade Federal Fluminense, há três ondas sucessivas de êxodo do Brasil para a África. No início do século XIX, chegaram os primeiros brasileiros, em sua maioria estabelecidos como comerciantes de escravos. Em 1835, ocorreu na Bahia a Revolta dos Malês, levando as autoridades brasileiras da época a expulsar cerca de 8.000 escravos, que acabaram voltando para o mesmo território. Essa segunda onda fez com que os hábitos dos Agudás mudassem em direção a práticas e costumes mais relacionados aos brasileiros de ascendência africana.  

 

Lei Áurea e o retorno aos países de origem  

Após 1888, a promulgação da Lei Áurea no Brasil, que proibia a escravidão, fez com que novos ex-escravizados cruzassem o Atlântico em direção aos seus países de origem. Isso coincidiu com o início da colonização francesa de Daomé, após o Tratado de Berlim, e foram os Agudás que os franceses encontraram como importante auxílio na conquista. Muitos cargos importantes, especialmente no comércio, ficaram nas mãos dos Agudás, embora aos poucos tenham sido substituídos por empresas francesas.  

 

Enrique ressalta que, dependendo da data de chegada, e sob o nome comum de Agudás, eram agrupados aqueles que haviam sido traficantes de escravos, chegados na primeira onda, e aqueles que haviam sido escravos, às vezes vendidos ou transportados pelos primeiros. Em 1949, os Agudás começaram a perder poder e, na independência do Benin em 1960, foram acusados de terem ajudado os brancos na colonização de seu território. “O principal aspecto que gosto de destacar é que essa nova identidade étnica permitiu a integração dos ex-escravizados e seus descendentes como cidadãos de pleno direito, que foram um importante pilar na construção do moderno Benin”, explica o fotógrafo.  

 

Neste cenário teórico, um personagem que vale a pena conhecer é Francisco Félix de Souza, mais conhecido como Chachá, que era o vice-rei de Abomey e tinha a exclusividade do comércio de diversos produtos, incluindo escravos. Nascido em Salvador, Bahia, mudou-se para o Golfo da Guiné por volta de 1800 para continuar e impulsionar seus negócios, tornando-se uma das pessoas mais ricas da região. Quando morreu, deixou mais de 80 filhos homens, sem contar as filhas.  

 

Agudás e suas marcas brasileiras na África  

“Com todo esse conhecimento teórico, percebi que não poderia continuar meus estudos sobre os Agudás e suas marcas brasileiras na África sem visitar sua casa. E assim o fiz durante um mês. Tive a oportunidade de conhecer as famílias Agudás mais importantes em suas casas e ouvir as histórias de seus antepassados. Também entrei em contato com descendentes de brasileiros que tentam manter viva a cultura e as tradições do Brasil”, comenta Enrique.  

  

Há dois focos principais (além de Lagos, na Nigéria, e Togo) onde os Agudás se concentram: na capital Porto Novo (curioso que o nome ainda seja em português) e em Ouidah. Porto Novo ainda preserva edifícios muito brasileiros, como a antiga mesquita, com grande semelhança arquitetônica com a Igreja de São Francisco, em Salvador. Grandes famílias, como os Domingos ou os Patterson, têm casas construídas em estilo colonial brasileiro. É precisamente lá que, em janeiro, são celebradas as festas mais brasileiras, como Nosso Senhor do Bonfim ou folguedo da burrinha, que é uma forma antiga de bumba-meu-boi.  

 

Ouidah: experiência interessante e muito intensa  

Enrique descreve que visitar Ouidah é uma experiência interessante e muito intensa: “Percorrer os cinco quilômetros que separam o palácio do Chachá, onde ocorriam os leilões de escravos; a árvore do esquecimento, onde os homens tinham que dar 9 voltas e as mulheres 7 para esquecer seu passado; a casa Zamal, onde eram amontoados até o embarque, ou o cemitério daqueles que não resistiam a essas atrocidades, até chegar à porta de não retorno, onde embarcavam para a América. É lá, no silêncio sepulcral da costa, que o som ensurdecedor das correntes ecoa... E aí surge um esforço intelectual para compreender a visão africana do genocídio do tráfico de escravos”, detalha.  

 

É verdade que em 1452 o Papa Nicolau V, por meio da bula Dum, autorizou Alfonso V de Portugal a escravizar os negros da África Ocidental: “Concedemos a você em perpetuidade, de acordo com seus usos e dos seus sucessores, invadir, conquistar, apoderar-se, subjugar e reduzir à escravidão perpétua os sarracenos, pagãos e outros infiéis”, especifica o texto papal.  

 

“Isso significa que o tráfico não era visto como um problema africano e, além disso, as origens, identidades e outros atores desse genocídio são difusos. Existe também a parte em que os descendentes dos traficantes de escravos tentam reabilitar sua imagem, destacando seu lado mais humano, como não separar famílias ou evitar que fossem sacrificados no reino de Daomé”, conta Enrique.  

 

O fotógrafo comenta ainda sobre as evidências da importância do vodu para esses escravizados. Com uma infinidade de línguas que os impediam de se comunicar, seu elo com os ancestrais e suas terras era a religião vodu, que deu origem a religiões de matriz africana, como o candomblé, o tambor de mina ou a santeria. Os cultos em terras americanas eram uma justificativa para convocar reuniões e se afastar do universo do colonizador, como atos reivindicatórios de liberdade.  

 

Religião: conexão perdida com seus ancestrais  

Arrancados à força e submetidos física e culturalmente, muitos encontraram na prática religiosa a conexão perdida com seus ancestrais e suas terras. Além disso, criavam laços com outros afrodescendentes de origens diversas. 

Assim, nessa África, no Golfo da Guiné, encontramos os vestígios da civilização trazida do Brasil pelos escravos libertos: não apenas os sobrenomes familiares, mas a arquitetura, a gastronomia (onde o óleo de dendê é predominante), a religião, em que se encontra facilmente o paralelismo entre o vodu e o candomblé, as festas como Nosso Senhor do Bonfim, a burrinha e a capoeira dão sentido ao título de um dos maiores estudiosos desse fenômeno.  

 

Em seu livro 'Fluxo e Refluxo', sobre o retorno dos Agudás às terras de seus ancestrais, Verger comentou: “muitos dos negros retornaram livres à África, já com muitos costumes brasileiros, criando uma espécie de Brasil na África, assim como se formou uma espécie de África no Brasil”. “Os Agudás são aqueles que levaram seu coração para a África e aqueles que trouxeram para o coração da África o Brasil”, define Enrique.  

 

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Exposição Retornados  

De 23 de janeiro a 10 de março  

Casa do Brasil, em Madri  

 

 

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